Sob a sombra da repressão, Ruanda se reconstrói 20 anos após genocídio
País fez julgamentos e reduziu pobreza, mas ainda tem pouca liberdade.
Genocídio contra etnia tutsi deixou ao menos 800 mil mortos em 100 dias.
Era 1994, o Brasil chorava a morte de Ayrton Senna, a África do Sul elegia seu primeiro presidente negro no pós-apartheid, o Reino Unido e a França inauguravam o Eurotúnel e a Otan fazia o primeiro ataque contra aviões sérvios durante a guerra da Bósnia. No mesmo ano, em 100 dias, de abril a junho, 800 mil pessoas morriam assassinadas em Ruanda. O genocídio, termo adotado após muito debate nos comitês da ONU, foi um dos episódios mais sangrentos da segunda metade do século XX, e afetou quase um terço da população do pequeno país do centro da África.
A matança de tutsis, etnia minoritária de Ruanda, começou a ser organizada poucos anos antes pelo governo de maioria hutu. O estopim foi a morte do presidente Juvenal Habyarimana, que teve seu avião alvejado, num crime até hoje não resolvido. Sem o presidente, os radicais do governo se apropriaram da administração e eliminaram opositores. A extinção tutsi virou política de Estado, campanha promovida com incentivos e ameaças e enfatizada em discursos na rádio e na TV. “Basicamente, o genocídio foi causado por um desejo de elites em manter o poder e uma população aberta à manipulação por causa da pobreza crônica”, explicou ao G1 Nigel Eltringham, professor de antropologia da Universidade de Sussex, no Reino Unido.
O genocídio não apenas matou entre 800 mil e 1 milhão de pessoas (nas estatísticas do governo), como acabou com toda a já precária estrutura do país.
Vinte anos depois, no entanto, Ruanda exibe estatísticas surpreendentes: redução da pobreza de 59% em 2001 para 44,9% em 2011, um crescimento econômico de 8% ao ano, PIB per capita de US$ 1,5 mil (contra US$ 575 em 1995), 95% de taxa de matrícula no ensino primário e taxa de alfabetização de 71%. Segundo o relatório ‘Fazendo Negócio’ do Banco Mundial de 2013, o país aparece em 52º dos 185 países mais fáceis para fazer negócio e em 8º no ranking de melhores nações para se começar um negócio.
Todos esses ótimos indicadores foram conquistados com pouca liberdade de expressão e repressão política do atual governo. Outra crítica é a falta de julgamento de crimes cometidos pela guerrilha tutsi que terminou com o genocídio. Organizações internacionais também apontam o envolvimento da atual administração no conflito da vizinha República Democrática do Congo.
Apesar de viver sob um governo quase autocrático, os ruandeses devem ver, em pouco tempo, seu país ficar independente da ajuda internacional – responsável por 86% do orçamento do país em 2001, hoje o envio estrangeiro chega a 40%. O dinheiro das doações foi a base para a reconstrução do país. Um mundo envergonhado pela omissão e falta de atitude deu boas gorjetas à nação devastada.
Assim que o genocídio acabou e que as cifras de mortos foram estampadas, as potências tentaram compensar seu silêncio com uma boa verba para reconstrução. Mas a verdade é que a inação da comunidade internacional fez com que Ruanda ficasse marcada como um vergonhoso exemplo de indiferença e abandono das potências mundiais.
Poucos dias depois do início da matança, uma tropa bem treinada de franceses, belgas e italianos correu para retirar os estrangeiros do país. Enquanto Ruanda recolhia corpos nas ruas, o mundo debatia na ONU se a palavra genocídio era mesmo a mais apropriada para classificar a situação – e retirava tropas de paz.
Em maio, um mês depois do estopim do massacre, os ruandeses estavam sozinhos em seu campo de luta. O registro do massacre foi feito em sua maioria pelas organizações humanitárias, que trabalhavam na região já antes do genocídio – e alertaram exaustivamente para a tragédia que se anunciava diante dos seus olhos. “O fracasso das potências foi muito chocante e vergonhoso. E quando começou o massacre, todos viam e sabiam. Não foi só que não houve resposta, mas a ONU tirou muitas das tropas no meio do genocídio”, contou em entrevista ao G1 Carina Tertsakian, pesquisadora sênior da organização Human Rights Watch.
Antes, todos eram um
O ódio sectário não é um evento centenário em Ruanda. Pelo contrário. Antigamente, tutsis e hutus eram o mesmo povo, que dividia a mesma terra, acreditava nos mesmos deuses e falava a mesma língua kinyarwanda – mantida como uma das três oficiais do país atualmente.
A divisão começou a existir pela forma de contar a riqueza: tutsis eram criadores de gado, tinham poder político e econômico, e hutus eram a maioria agricultora. Com a maioria se casava dentro do grupo social em que foi criado, começou a haver uma semelhança física entre os indivíduos de cada grupo. Essas diferenças existiam de maneira sutil quando os europeus chegaram em Ruanda, na virada do século XX e foram enfatizadas na colonização alemã e belga. Para os colonizadores, os tutsis eram uma “raça superior” por já pertencerem a uma elite, terem traços finos, serem altos e mais magros. Os belgas passaram a exigir inclusive um cadastro de acordo com a etnia e uma carteira de identidade que informava o grupo do cidadão.
Tudo isso acirrou as diferenças, e depois da independência do país, em 1959, os hutus derrubaram o rei tutsi, implantaram uma república e expulsaram e mataram tutsis. Na década de 1960, os tutsis exilados nos países vizinhos somavam 600 mil pessoas. Nos anos 1980, alguns se organizaram na Frente Patriótica Ruandesa, um grupo paramilitar que depois pôs fim ao genocídio.
Machetes e facas
Quando o avião do presidente caiu matando ele e o líder do vizinho Burundi, os organizadores do genocídio começaram a pôr em prática a eliminação de tutsis e de opositores à ideia do genocídio. “Matança era conhecida como ‘trabalho’ e, machetes e armas de fogo eram descritos como ‘ferramentas'”, diz um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch sobre o massacre. Segundo o texto, ao se apropriar das hierarquias militares e dos sistemas administrativos e políticos, os líderes do genocídio puderam exterminar os tutsis em uma “velocidade impressionante e inimaginável”.
O governo interino teve ampla ajuda francesa para implantar seu massacre – a França inclusive ajudou a tirar do país membros da família do presidente morto. Os funcionários do regime recebiam instruções para levar grupos de tutsis a locais de execução, distribuir “ferramentas” para o “trabalho”, confiscar terras e organizar covas para os corpos. As milícias que atacavam eram enviadas a diferentes partes do país.
No final de abril, as autoridades anunciaram uma campanha de “pacificação”, que na verdade nada mais era do que um grande controle sobre as mortes – e uma mudança na estratégia de matanças em larga escala para pedir que os tutsis fossem trazidos para investigação e matá-los um a um.
Na metade de maio, a última fase do massacre foi posta em prática, com a perseguição dos tutsis que sobreviveram. Milhares fugiram, gerando um enorme fluxo de refugiados nos países vizinhos. As mulheres eram geralmente estupradas e mutiladas antes de serem mortas.
Com quase nenhuma ajuda internacional, a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) começou a ganhar batalhas a partir de maio. Antes de 1994, a guerrilha tutsi formada no exílio já representava uma ameaça ao governo hutu, mas foi com a morte do presidente – crime geralmente atribuído a eles – que o grupo avançou para a luta armada.
No começo de julho, a Frente tomou a capital e derrubou o governo. Um governo de união foi criado. Em 2000, o atual presidente Paul Kagame, um ex-comandante da FPR, assumiu o poder.
Julgamentos fast-food
Acabou o genocídio e Ruanda estava devastada. “Quebrados em todos os sentidos da palavra. Não havia nenhuma infraestrutura, nada funcionava. E as pessoas estavam devastadas, traumatizadas, feridas, não tinham esperança. Eles tiveram que fazer tudo.
Começaram com estabilidade e segurança. E isso significava ajudar as pessoas a ter confiança nelas mesmas”, disse ao G1 Patricia Crisafulli, autora do livro “Ruanda Inc.”, que conta (de maneira muito otimista) a volta por cima que Ruanda deu.
Uma das maiores dificuldades do novo governo era julgar quem cometeu os crimes. O enorme número de acusados inviabilizava o procedimento nas cortes comuns – e superlotou as prisões. Segundo a ONG Human Rights Watch, em 1998, o país tinha 130 mil prisioneiros, mas apenas 1.292 haviam sido julgados.
Para superar isso, o governo decidiu espalhar tribunais informais por todo o país. As chamadas gacaca – nome de um sistema tribal de resolução de disputas – tinham como objetivo não apenas promover a justiça dos milhares de casos de mortes, mas também fortalecer a reconciliação e revelar a verdade sobre o genocídio. Funcionava assim: os juízes eram, geralmente, pessoas sem treinamento eleitas pelo povo que aprendiam a realizar um julgamento aberto com a comunidade local, que deveria falar abertamente sobre os casos.
As gacacas começaram em 2005 e julgaram quase 2 milhões de casos até seu encerramento, em 2012. O legado foi de sentimentos contraditórios: muitos tribunais resultaram em resultados injustos, as vítimas não receberam indenização do Estado e não se resolveu completamente a desconfiança entre tutsis e hutus. Mas as gacacas também foram uma importante ferramenta que ajudou a Corte a analisar os milhares de casos, deu a oportunidade aos sobreviventes de saber o que aconteceu com seus parentes e ajudou alguns a conseguir continuar a vida de forma pacífica com os vizinhos hutus.
Além das gacacas, ao menos 10 mil pessoas foram julgadas em tribunais comuns.
Ter julgado seus criminosos – e alguns foram até a Cortes Criminais Internacionais – ajudou muito Ruanda a se reerguer. “O revanchismo tinha tudo para se instalar, mas os ruandeses não recorreram ao erro de continuar a se autodestruírem em nome da supremacia de uma ‘raça’ cuja existência não é real, e sim um conceito moldado para facilitar o controle dos colonizadores belgas”, disse a internacionalista brasileira Heliatrice Marques, que trabalhou como voluntária no país em 2012. “Hoje, o país vive um considerável crescimento econômico, goza de certa estabilidade política e vê suas crianças sobreviventes do genocídio se tornando adultos capazes de tomar seu futuro em suas próprias mãos.”