Obras da Copa ‘produzem sem-teto’, diz relatora da ONU em visita a PE
Raquel Rolnik critica desapropriações; famílias atingidas relatam problemas.
Governo diz que há diálogo com famílias e que indenização segue normas.
Moradores que adoeceram seriamente após serem obrigados a deixar suas casas, famílias desesperadas diante de um iminente despejo, indenizações com valor baixo e pagamentos pendentes. Esses são alguns dos problemas enfrentados por quem foi afetado pelas obras para a Copa do Mundo 2014 na Grande Recife, segundo entidades que acompanham os processos de desapropriações ouvidas pelo G1.
O G1 publica, entre 9 e 15 de dezembro, uma série de reportagens sobre os preparativos para a Copa do Mundo 2014. Segundo levantamento, 75% das obras de mobilidade estão atrasadas ou foram descartadas.
A relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, visitou áreas de desapropriação e afirma que o Estado está “produzindo sem-tetos”. A visita, ocorrida no dia 29 de novembro, fez parte da programação do seminário “Legados e Relegados da Copa do Mundo”.
“Parece-me que o marco internacional que define como se dão as remoções forçadas, respeitando o direito à moradia adequada, não está sendo observado em várias dimensões, como a falta de projetos alternativos para minimizar remoções”, diz a relatora.
“Também existe uma regra de ouro que diz que, quando acontece uma remoção, a situação da moradia da pessoa que vivia ali nunca pode piorar. Uma opção é o reassentamento ou a indenização que permita que ela compre um lugar no mínimo igual ao que tinha, e o que está acontecendo aqui é que estão produzindo mais famílias sem-teto”, diz Rolnik.
Os moradores cujas casas são alvo de desapropriação – perda da posse em troca de uma indenização – para dar lugar a grandes obras de mobilidade para a Copa reclamam ainda que, quase um ano após assinarem os acordos, ainda não receberam o dinheiro. Eles já deixaram as casas onde moravam e agora pagam aluguel. Parte das famílias recorreu à Justiça.
No bairro do Coque, Centro do Recife, famílias estão sendo removidas para a pavimentação do Canal Ibiporã, que dará novo acesso ao terminal de ônibus e estação de metrô Joana Bezerra. A obra não está diretamente ligada à Copa, mas as indenizações de até R$ 4 mil chocaram a relatora da ONU. Alguns moradores estão pagando R$ 200 de aluguel para morar em palafitas ao longo do Rio Capibaribe.
No Loteamento São Francisco, no bairro do Timbi, em Camaragibe, Região Metropolitana do Recife, famílias estão sendo desapropriadas para obras do Corredor Leste-Oeste, Ramal da Copa, TI Camaragibe e Avenida Belmino Correia.
O mecânico desempregado Nelson Gregório mora com os três filhos em um terreno de 300 metros quadrados. “Eu tive até um AVC [acidente vascular cerebral] quando recebi a notícia. Não aceitamos o valor de R$ 289 mil e entramos na Justiça. Não quero atrapalhar a obra, mas estão expulsando a gente com quase nada no bolso”, reclama.
A relatora também se encontrou com representantes do governo estadual e da Prefeitura do Recife. A visita não foi oficial, mas a relatora garante que vai produzir uma carta-alegação para chamar a atenção do governo federal sobre o problema.
Imóveis grandes, indenizações pequenas
Em outra área entre Camaragibe e Recife, imóveis e terrenos de até 800 metros quadrados foram desapropriados para a construção do Ramal da Copa e do Terminal Cosme e Damião. Os primeiros valores oferecidos pelo governo estadual foram negados pela maioria. Sem acordo, os moradores tiveram que deixar os locais à força, e a negociação foi parar na Justiça.
O pedreiro Reginaldo Zeferino afirma que até aceitou a oferta inicial de R$ 160 mil para o terreno de 800 metros quadrados, mas não entende o motivo de o valor pago ter sido menor, R$ 115 mil. “O roubo começou por aí, pois eles não cumpriram o acordo. Logo depois da desapropriação, eu comprei até material, como areia, telha, madeira, para construir uma nova casa em outro canto, mas está tudo perdido por causa dessa demora [em receber o dinheiro]”, afirma.
A dona de casa Lucicleide Mari morava com três filhos e o neto em um terreno de 650 metros quadrados que a mãe dela herdou do marido. Uma das filhas dela, Kelly dos Santos, já tinha investido R$ 8 mil na construção de uma nova casa no mesmo local. Só faltava colocar o telhado quando a notícia da desapropriação chegou.
“Eles nem negociaram direito. Disseram que a gente não devia recorrer, porque ia perder mesmo, meio que coagindo a gente a não procurar nossos direitos”, denunciou Kelly. “Eles pagaram somente R$ 153 mil, e vamos ter que dividir esse dinheiro entre nove pessoas, não vai sobrar nada. Nós não pedimos para sair e agora estou pagando R$ 350 de aluguel, o que é muito caro para quem sobrevive apenas com um salário mínimo”, diz.
O comerciante Josafá dos Santos guarda todos os documentos referentes ao problema. Um deles é o comprovante do depósito de R$ 164.375,60, feito pela Secretaria das Cidades, referente ao terreno de 600 metros quadrados que ele tinha. Outro é um protocolo que mostra a última visita feita à Defensoria Pública do Estado, em 5 de junho de 2013, para se informar sobre o andamento do processo. “Eles disseram para a gente ficar aguardando em casa, e acho que botaram uma pedra em cima do assunto”, criticou.
Justiça
A defensora pública Daniele Monteiro afirma que recebeu cerca de 300 casos desse tipo. “Quem ainda permanece sem receber indenizações são pessoas que estão com pendências judiciais no que diz respeito à prova da propriedade e regularidade fiscal, como débito de IPTU, Imposto de Transmissão e Imposto Causa-Morte”, diz.
Segundo ela, foi preciso abrir processos paralelos na Vara Cível para regularizar primeiro os títulos de propriedade. “Estamos esbarrando em questões legais para o cartório dar ao cidadão esse título. A Defensoria Pública está tentando ao máximo. Infelizmente, é o tipo de causa que não tem previsão de liminar, a legislação é contrária ao cidadão e a favor do estado, é bem arcaica”, disse.
O juiz Djalma Andrelino, da 4° Vara da Fazenda Pública, explica que o poder público pode desapropriar qualquer imóvel visando o interesse público. “O depósito tem que ser feito imediatamente, mas a Justiça só libera quando tem prova segura da propriedade do imóvel, até para proteger o interesse de terceiros”, diz.
O Comitê Popular da Copa em Pernambuco, formado por um conjunto de organizações da sociedade civil, afirma que cerca de duas mil famílias no Recife, em Camaragibe e em São Lourenço da Mata foram atingidas por obras visando o Mundial.
A entidade critica a forma como o governo estadual está lidando com a situação. “A estratégia é a do contato individualizado e diálogo em tom de ameaça, sem negociação em termos de valores, quando na verdade deveria haver audiência pública. As famílias são de baixa renda, sem acesso à Justiça, tornando-as ainda mais frágeis”, afirma Rudrigo Souza e Silva, representante no Comitê do Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec-PE).
Para Rudrigo, o governo tem aproveitado o fato de a maioria das famílias não ter a posse formal dos imóveis para subvalorizar as indenizações. “Tivemos relatos de que quatro pessoas já faleceram nesse processo por depressão, estresse, problemas cardíacos. E nós criticamos não apenas as indenizações, pois acreditamos que poderia ter sido feito um plano habitacional para essas famílias serem relocadas para áreas próximas, porque tempo houve. Além disso, a gente também critica que as intervenções mudam a cada momento e não são apresentadas ao Conselho Estadual das Cidades para serem discutidas. Achamos os projetos urbanisticamente frágeis e questionamos o interesse social deles”, apontou.
O G1 conseguiu contato com duas famílias dos quatro casos de mortes citados por Rudrigo Souza. “Quando começou a notícia da desapropriação, ela [a mãe] começou a ficar preocupada com o paradeiro da gente. Ficou sem dormir direito, comer bem. Quando viu as coisas acontecerem mesmo, foi a gota d´água. Ainda não analisei se vamos entrar com uma ação contra o Estado”, disse Analice Ferreira, filha de Severina Maria de Lima, de 70 anos, que morreu em novembro de 2012 de infarto. Ela mora no Timbi, em Camaragibe, e ainda não sabe a data exata do despejo.
Já Maria Ferreira de Araújo tinha 85 anos quando morreu, em março deste ano, por causa de complicações decorrentes de uma pneumonia. “Minha mãe era uma senhora e já estava doente, mas ela ficou muito deprimida quando soube de tudo. Ela ficou muito preocupada com a gente, porque a indenização não ia cobrir a compra de outro lugar, e a situação só foi piorando. Agora, só falta a minha casa e a do vizinho serem desapropriadas. O terreno é grande, com quatro casas, onde moram meus irmãos, e com a indenização partilhada só sobra R$ 3 mil para mim, que não dá para nada. Eu não sei o que vou fazer”, disse a filha dela, Maria Zuleide Ferreira.
O terceiro caso de morte detalhado pelo Comitê Popular da Copa em Pernambuco diz respeito a um homem que foi vítima de um acidente vascular cerebral. Ele teria ficado muito estressado com a notícia da desapropriação. Em uma quinta-feira, houve uma discussão sobre o valor do imóvel e ele ficou muito nervoso, morrendo no domingo seguinte.
Resposta do governo
A secretária executiva estadual de Desapropriações, Analúcia Cabral, afirma que 441 imóveis estão sendo desapropriados nas obras da Copa. O órgão afirma que a conta foi feita por imóveis residenciais e mistos (residencial e comercial) desapropriados, e não por famílias. Também entraram na contagem as terras nuas (sem edificações) e imóveis institucionais, como igrejas.
Cabral assegura que uma série de ações foram realizadas para orientar e esclarecer os afetados sobre as desapropriações. “Uma equipe multidisciplinar, formada por engenheiros, arquitetos, assistentes sociais e advogados, vem conduzindo o processo de desapropriação e disponibilizando, constantemente, um canal de diálogo com a comunidade. Nas audiências públicas, os moradores e comerciantes tiveram a oportunidade de assistir as apresentações dos projetos da Copa e obter informações completas do processo de desapropriação, além de esclarecer dúvidas. A presença da comunidade de Camaragibe, Recife e Olinda ocorreu em, pelo menos, seis audiências públicas que aconteceram em escolas estaduais”, disse.
Sobre a reclamação referente ao valor das indenizações, a secretária informou que os laudos são baseados em preços de mercado e definidos conforme a NBR 14.653, regulamentação da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). “A ausência de regularidade na documentação dos imóveis faz com que a desapropriação seja judicial, sendo ajuizadas ações com valores médios de mercado”, diz.
A secretária acrescentou que o valor das indenizações da maioria das desapropriações é superior aos valores de imóveis do Programa Minha Casa Minha Vida, “sendo mais vantajoso para as famílias receber as indenizações pagas pelo Estado”.
Ela diz que o Projeto de Lei Ordinária nº 1743/2013, do Poder Executivo, tramita na Assembleia Legislativa de Pernambuco e vai possibilitar o pagamento do auxílio moradia e posterior reassentamento para os expropriados do Ramal Cidade da Copa e da Navegabilidade do Rio Capibaribe. A redação final do texto foi aprovada no último dia 4 de dezembro e segue para sanção ou veto governamental. O prazo é de 15 dias.
Do G1