Comissão da Verdade identifica 371 casos de tortura entre 1964 e 1966
Segundo integrante do grupo, desde início regime instalou ‘clima de terror’.
Vítimas eram trabalhadores e sindicalistas indicados por empresas.
Uma pesquisa encomendada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) identificou, só no Rio de Janeiro, ao menos 371 casos de tortura entre 1964 e 1966, período que antecede, segundo estudiosos, a resistência à ditadura pela luta armada. Segundo o levantamento, feito com base em pedidos de reparação à Secretaria de Direitos Humanos do RJ, os torturados, à época, eram trabalhadores e pessoas ligadas ao movimento sindical, não guerrilheiros.
O dado, obtido a partir de trabalho coordenado pelo professor Marcelo Jasmin (PUC-Rio), reforça a tese defendida pela Comissão de que violações graves aos direitos humanos começaram no início do regime militar. Até então, parte da historiografia sobre o período registrava que os casos de tortura se intensificaram após 1968, principalmente em reação a ações de grupos da guerrilha urbana.
ESPECIAL “50 ANOS DO GOLPE MILITAR”: a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, desencadeou uma série de fatos que culminaram em um golpe de estado em 31 de março de 1964. O sucessor, João Goulart, foi deposto pelos militares com apoio de setores da sociedade, que temiam que ele desse um golpe de esquerda, coisa que seus partidários negam até hoje. O ambiente político se radicalizou, porque Jango prometia fazer as chamadas reformas de base na “lei ou na marra”, com ajuda de sindicatos e de membros das Forças Armadas. Os militares prometiam entregar logo o poder aos civis, mas o país viveu uma ditadura que durou 21 anos, terminando em 1985.
Coordenadora do grupo de trabalho da CNV que pesquisa o contexto e as motivações do golpe militar de 1964, a advogada Rosa Cardoso sustenta, com base nos dados, que o golpe foi preparado desde o início para criar um “clima de terror” e tentar minar pela raiz qualquer tipo de resistência.
“Tudo isso indica que a ditadura já tinha, já estava orientada no sentido de implantar um estado de terror, que mobilizasse, que assustasse a população para que a população intimidada não resistisse e não contestasse”, diz.
A comissão chegou ao número por meio de uma pesquisa encomendadoa à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foram analisados 1.005 pedidos de reparação às vítimas. Os pesquisadores concluíram 43,68% das graves violações relatadas nos processos concentram-se nos anos iniciais da ditadura, antes da contraofensiva de insurgentes.
Segundo Rosa Cardoso, os militares envolvidos no golpe foram preparados anteriormente, inclusive com treinamentos na Escola Superior de Guerra, para a prática de tortura. “Cursos foram dados a muitos oficiais brasileiros, e eles estavam já preparados então para implantar um sistema ditatorial desde o início e com muita violência. E fazia parte dessa lógica de que era preciso criar desde logo um clima de muito terror para que não houvesse resistência”, explicou.
Sindicalistas
As primeiras prisões do regime se concentravam em capturar sindicalistas e trabalhadores, indicados pelas empresas onde eles trabalhavam. Isso se atribui, diz Rosa Cardoso, ao fato de que grandes empresas colaboraram com o golpe militar antes e depois dele deflagrado.
“Muito claramente o golpe não foi um golpe só militar. Por isso que a historiografia hoje reconhece e insiste em dizer que ele foi civil-militar. Antes de 64, inclusive, a participação dos civis foi muito mais visível e intensa. E essa participação civil foi, sobretudo, uma participação empresarial”, destacou.
De acordo com a pesquisa, os nomes de pessoas a serem presas eram entregues pelas empresas, em listas tão numerosas que os presos não cabiam em delegacias. Por isso, o regime chegou a usar estádios. Foram encontrados registros do uso do estádio Caio Martins, em Niterói, e do Clube Ypiranga FC, em Macaé.
A prática, explicou Rosa, era comum em países como Argélia e Vietnã, onde houve luta contra insurgentes comandadas por agentes públicos. O Brasil, sendo a primeira ditadura militar na América do Sul, utilizou estádios para prisões em massa e acabou “dando o exemplo” para outros como Chile e Argentina, onde a prática era mais comum, detalhou a integrante da CNV.