“Nunca seremos iguais se não formos iguais em dignidade”, afirma PGR
A procuradora-geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, participou, na manhã desta segunda-feira (30), da abertura do seminário “Impactos da Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Fazenda Brasil Verde”, promovido pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) em parceria com o Conselho para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
O evento visa divulgar a sentença e sensibilizar os operadores do Direito para a pauta do trabalho escravo contemporâneo. “A Constituição quer que defendamos a dignidade e a igualdade de todos os brasileiros. Nunca seremos iguais se não formos iguais em dignidade. Que essa sentença nos estimule a trabalhar melhor, a olhar para frente, a defender políticas públicas de paridade que atendam a dignidade da pessoa humana em todas as suas diferentes expressões”, afirmou a PGR no evento.
Raquel Dodge destacou a presença de representantes de diversos órgãos públicos que atuam no combate à escravidão, como o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho, a Comissão Pastoral da Terra, a organização não governamental Repórter Brasil e o próprio Ministério Público Federal (MPF). “Muito já se fez contra a escravidão no Brasil, mas muito há de ser feito. Esse ainda é um problema que ocorre insistentemente e atinge os mais frágeis, os mais necessitados, que precisam das instituições públicas brasileiras para que sua dignidade seja restabelecida”, pontuou, ao dar início ao debate.
A diretora-geral adjunta da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), Sandra Lia Simón, destacou os quatro pilares que caracterizaram o Brasil como referência internacional no combate ao trabalho escravo, mas que têm sido colocados em cheques recentemente: o próprio conceito do trabalho escravo, a lista suja (cadastro de empregadores que submetem pessoas ao trabalho escravo), atuação interdisciplinar interinstitucional que se faz por meio do grupo móvel do combate ao trabalho escravo e o dano moral.
“Precisamos debater os efeitos dessa sentença porque certamente vamos precisar da Corte Interamericana dos Direitos Humanos em ocasiões futuras. Precisamos de proposições e estratégias para enfrentar os tempos sombrios por qual passamos”, detalhou.
Também participaram da mesa de abertura a procuradora da República Ana Carolina Roman, que atua como representante do MPF no Conatrae; Luiz Eduardo Bojar, vice-procurador-geral do trabalho, e Adilson Carvalho, representante do Ministério dos Direitos Humanos.
Avanços e desafios – A procuradora-geral da República destacou que Corte Interamericana, na sentença proferida, valorizou os avanços da atuação no Brasil no enfrentamento ao trabalho escravo. Lembrou ainda que, no início da década de 1990, aconteceu o Fórum Nacional Contra a Violência no Campo, que ao longo dos anos discutiu e trabalhou para superar diversos obstáculos que existiam em relação ao tema, como, por exemplo, a dificuldade de se conceituar o que era exatamente a condição análoga à de escravo, a falta de uma instituição específica para tratar do tema e a corrupção de fiscais e auditores que não registravam ou não davam andamento aos registros de ocorrências de trabalho escravo.
Raquel Dodge ressaltou que é necessário reconhecer os avanços havidos para não se permitir os retrocessos, já que, no Brasil, vigora o princípio constitucional da proibição do retrocesso. Para ela, é preciso avançar na proteção das pessoas que têm sido aliciadas e escravizadas, na escravização de mulheres e crianças, na política de repressão mais adequada, na investigação e punição mais rigorosa, na indenização da pessoa escravizada e no acesso à Justiça.
Para a PGR, os recuos que têm havido incidem sobre questões que já foram superadas nos últimos 30 anos. Ela enfatizou que o reconhecimento da existência da escravidão no território nacional – sob um conceito internacional, validado pelo Brasil por ser signatário de tratados internacionais e reconhecido internamente pelo processo legislativo – já é um grande avanço.
“Negar a existência da escravidão significaria agora uma um retrocesso. Mudar o conceito de escravidão que ocorre no Brasil significa esconder que existe escravidão no Brasil, escravidão na acepção que todos nós ajudamos a cunhar, ajudamos a reconhecer ao longo das últimas três décadas”, frisou Raquel Dodge.
Sobre o conceito do trabalho escravo, a procuradora-geral da República esclareceu que o código penal sofreu alterações para que a definição da escravidão fosse além da questão do cárcere privado ou da limitação da liberdade. Atualmente, a lei considera o trabalho escravo não somente no sentido de que afeta a liberdade da pessoa, mas também a dignidade, já que o agente que submete alguém a essa condição transforma a pessoa em um objeto, utilizando-a para satisfazer os seus interesses.
“É nesse sentido que sentença da corte interamericana de direitos humanos reconhece que o marco regulatório existente no Brasil é suficiente, adequado e proporcional para que se desenvolva políticas públicas de enfrentamento da escravidão contemporânea. É importante que se use a sentença como um documento na luta de combate ao trabalho escravo”, destacou.
A PGR falou também sobre os desafios que ainda têm de ser enfrentados no combate ao trabalho escravo no Brasil. Segundo ela, a sentença da Corte Interamericana evidencia as carências, não no sentido de criticar, mas de apontar um caminho. Ela destacou que a sentença aposta na institucionalização para que os problemas que persistem possam ser sanados. O evento continuou na parte da tarde com a realização de mesa de debates.
Recomendação – Raquel Dodge lembrou ainda que recomendação entregue ao ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, solicita a revogação imediata da Portaria MTb Nº 1129/2017. A intenção é impedir um retrocesso no conceito do trabalho escravo. A nova regra reduz os elementos que indicam o trabalho escravo, de forma que a jornada excessiva ou a condição degradante só poderão ser comprovadas quando for constatada a restrição de liberdade do trabalhador, eliminando os outros elementos dispostos na legislação.
O prazo para a resposta da recomendação terminou neste sábado (28). A Procuradoria-Geral da República aguarda posicionamento do Ministério do Trabalho.