Vaticano presta contas na ONU sobre abuso contra crianças no clero
Comitê de Direitos da Criança critica modo como Igreja lida com pedofilia.
Santa Sé nega acusação de que dificulta trabalho da Justiça contra padres.
O Vaticano afirmou nesta quinta-feira (16), ao Comitê de Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), que não existe desculpa possível para os casos de exploração e violência contra menores, e admitiu que existem responsáveis por abusos em “todas as profissões, inclusive entre membros do clero”.
“Existem abusadores entre os membros das profissões mais respeitadas do mundo e, mais lamentavelmente, inclusive entre membros do clero e de funcionários da Igreja”, disse o monsenhor Silvano Tomasi, representante da Santa Sé na ONU.
A apresentação do Vaticano no comitê foi uma oportunidade de a Igreja Católica participar de um debate público focado nos abusos sexuais de crianças cometidos por sacerdotes.
“A Santa Sé cuidadosamente delineou políticas e procedimentos no intuito de ajudar a eliminar tal abuso e a colaborar com as respectivas autoridades estatais para lutar contra esse crime. A Santa Sé também se comprometeu a ouvir cuidadosamente as vítimas de abuso e a admitir o impacto de tais situações nos sobreviventes e em suas famílias”, disse Tomasi ao comitê.
“A vasta maioria dos membros da Igreja, em instituições e no nível local, forneceu e continua fornecendo uma ampla variedade de serviços às crianças, educando-as, apoiando suas famílias e respondendo a suas necessidades materiais, emocionais e espirituais. Crimes anteriores cometidos contra menores foram justamente julgados e punidos pelas autoridades civis competentes em seus respectivos países.”
‘Interesses do clero’
O comitê pediu “diligência” (rapidez) à Igreja no tratamento dos casos de pedofilia e criticou a maneira como a Santa Sé lida com os casos.
“O exemplo que a Santa Sé deve dar ao mundo precisa virar um precedente. Tem que marcar um novo enfoque”, disse Sara Oviedo, investigadora que integra o comitê da ONU.
Ela denunciou que, na gestão dos escândalos de pedofilia, “deu-se preferência aos interesses do clero”.
“A Santa Sé não estabeleceu nenhum mecanismo para investigar os acusados de cometer abusos sexuais, nem tampouco para processá-los”, afirmou.
Sara também criticou as medidas tomadas pelo Vaticano em relação aos autores de abusos sexuais.
“Os castigos aplicados nunca parecem refletir a gravidade” (dos atos), destacou.
Vaticano nega
Em entrevista à Rádio Vaticano, Tomasi rebateu a acusação das associações de vítimas de pedofilia que afirmam que a Igreja dificulta o trabalho da Justiça contra os padres pedófilos.
“Essa denúncia me parece um pouco privada [ausente] de fundamento”, afirmou.
“A Santa Sé apoia o direito e o dever de cada país de julgar os crimes contra menores. A crítica de que [a Igreja] está tentando interferir, obstruir [as investigações] não se sustenta. Pelo contrário, queremos que haja transparência e que a Igreja siga seu curso”, acrescentou Tomasi.
Também falando à Rádio Vaticano, o padre Federico Lombardi, porta-voz do Papa Francisco, tentou desvincular a competência da Santa Sé na aplicação da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, ratificada em 1989 e em vigor desde 1990.
Segundo ele, “o direito canônico próprio da Igreja católica é muito diferente das leis civis dos Estados. A Santa Sé, portanto, e em virtude da Convenção, não é obrigada a responder às demandas de informação relativa a investigações realizadas com base no direito canônico”.
Lombardi justificou, assim, a negativa do Vaticano em responder ao questionário que a ONU enviou, em julho do ano passado, sobre dados das 4 mil investigações eclesiásticas que as dioceses enviaram durante anos à Congregação para a Doutrina da Fé, órgão responsável por julgar internamente as denúncias.
As associações de vítimas de pedofilia veem nessa negativa uma tentativa de encobrir os autores dos crimes, apesar de a Santa Sé argumentar que sua intenção é justamente proteger as testemunhas e as vítimas.
Série de escândalos
Durante mais de uma década, a Igreja Católica foi abalada por uma série de escândalos de abusos sexuais cometidos por religiosos contra menores de idade, o que começou na Irlanda e se estendeu à Alemanha, aos EUA e a vários países latino-americanos.
Os abusos foram, em muitas vezes, encobertos por superiores hierárquicos dos autores dos crimes, que em muitos casos foram apenas transferidos para outras paróquias, em vez de serem denunciados à polícia.
Assim como os demais signatários da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, a Santa Sé se compromete a enviar informes regulares sobre o respeito às normas do documento, e aceita a supervisão dos investigadores do comitê.
O Papa Bento XVI, que esteve à frente da Igreja Católica entre 2005 e 2013, foi o primeiro a pedir perdão às vítimas da pedofilia. Ele também exigiu uma política de “tolerância zero” contra os autores de abusos contra menores.
O atual Papa, Francisco, eleito em março do ano passado, criou no início de dezembro uma comissão para ajudar as vítimas de padres pedófilos e evitar novos casos.
A comissão, formada segundo recomendações de oito cardeais que assessoram Francisco na reforma da Cúria Romana (o governo da Igreja), deve trabalhar com os bispos e as conferências episcopais e sugerir medidas para proteger as crianças.
Anteriormente, Tomasi havia dito que a Santa Sé é a responsável legal pela aplicação da convenção da ONU apenas no território da Cidade do Vaticano, onde vivem 36 crianças. A posição dele foi bastante criticada.
No entanto, o monsenhor acrescentou que o Vaticano, como liderança da Igreja, está trabalhando com as paróquias para combater os casos de pedofilia.
O Vaticano informou que recebe cerca de 600 denúncias anuais de pedofilia contra sacerdotes, muitas delas sobre fatos ocorridos nos anos 1960, 70 e 80.
Do G1